domingo, 30 de agosto de 2009

A carteira do alentejano (via MaisÉvora)

Pedro Ferro, in Público, 4 de Setembro de 1993 (via Mais Évora)

"Muitos teimam em ver no Alentejo uma terra árida de religião, sem a capacidade da fé o chamamento do misticismo. É falso. O alentejano tem a fé dentro de uma carteira de plástico. O alentejano é o único ser do mundo que, sem conflitos existenciais e ideológicos, é capaz de trazer na carteira, ao lado do Bilhete de Identidade e da licença do rafeiro, o cartão do Partido Comunista e uma gravura de Nossa Senhora das Relíquias.

Abrir a carteira do alentejano é descobrir-lhe a própria alma. E desvendar-lhe as entranhas. Na carteira do homem das planícies está, como rã dissecada no mármore de bioquímico, a revelação de uma fé maior. O alentejano acredita "haver alguém a mandar nisto tudo" - e alarga o gesto a abraçar o mundo. Mas Deus não é para ele figura de altar. Deus é o que o alentejano sabe estar no crescimento do trigo e na fartura do azeite. Sóbrio em tudo, também na relação com o metafísico, o alentejano é avaro de exteriorização. Deus: questão que o alentejano tem consigo mesmo. O alentejano privatiza Deus, carrega, sem espectacularidades, uma religiosidade cósmica e, sobretudo, instintiva. Qualquer coisa que vem dos abismos do tempo.

Ironizava Manuel da Fonseca, nos anos 40, que os homens do Alentejo não entravam na igreja "só por serem obrigados a tirar o chapéu". O alentejano não sabe rezar, nem aprendeu a benzer-se. Em vez disso canta. A única missa a que os homens fazem questão de não faltar é a do Galo, na noite de Natal, mas só "para ouvir os cantores". Ainda pelo Natal, os alentejanos cantam "ao menino". Depois dele, vão de porta em porta cantar "os reis".

Manuel Ribeiro plantou no romance A Planície Heróica um padre a quem os paroquianos só pedem que "trate da sua courelazinha de trigo". Há alguns anos, em Serpa, a procissão fez-se sem padre. Em Beja, o bispo queixava-se ao Diário do Alentejo de ter "a mais pobre diocese do país". O seminário local está às moscas. Para a Igreja o Alentejo é ainda "terra de missão".

Mas os casais casam catolicamente e gostam de baptizar os filhos. Respeitam os santos, a Igreja e as suas manifestações. No entanto, recusam-se a "embarcar na conversa de padres". Ir à Igreja é "coisa de mulheres". E, mesmo estas, indo à missa mais do que meia dúzia de vezes por ano, passam a integrar o rol da "beatagem". O rebanho das "mal governadas", que, "em vez de tratarem da casa, não se tiram debaixo das saias dos santos". O maior azar de um marido, depois de mulher adúltera ou de "mau governo", é casar com uma beata.

Contudo, durante a guerra colonial, o Santuário da Senhora d'Aires, em Viana do Alentejo, encheu-se de ex-votos. A Nossa Senhora da Conceição recebe anualmente milhares de peregrinos em Vila Viçosa e os agricultores dos campos de Mértola e de Castro Verde acendem velas a Senhora de Aracelis, milagreira da chuva.

Há procissões em todas as aldeias. As mulheres integram o cortejo, com vestidos estreados, e os filhos, pela mão, trajados de anjinhos: os homens ficam aos cantos. Tiram o chapéu à passagem da padroeira e seguem depois o desfile atrás da música.

Por instintos que a história lavrou, o Alentejo desconfia da Igreja. Afinal, na lonjura dos séculos XII e XIII, o corcel cristão da chamada Reconquista deu à cruz a forma de uma espada. E, na centúria de seiscentos, a Inquisição de Évora foi, de todas, a que mais lenha juntou para os autos-de-fé. E ainda recentemente, durante o Estado Novo, a Igreja pouco terá feito para se demarcar dos velhos senhores das herdades e das vilas.
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