segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A Criança em Ruínas, José Luís Peixoto – p.30

vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino.
aquela casa tão grande com um quintal de galinhas
a morrerem ciclicamente. as malvas entristecidas
em canteiros já sem esperança. e em cada estrofe de
estar sentado perante a paisagem, o poema único e final.
as mulheres arrastam as tardes, se os ramos das laranjeiras
eram inesquecíveis? cada palavra possui um palmo
desse quintal infinito.

a fruteira sobre a mesa da cozinha é sangue no poema.
o meu destino emparedou-se, e um destino é para sempre.
as minhas mão estendidas são atravessadas pela luz
que mostra no ar a dança do pó. respondo tantas coisa aos
talheres guardados na gaveta.

chegam as vozes que nunca partiram. chegam os rostos
que sonho quando acordo de repente a chorar. agora,
és o homem da casa, disseram-me. e já não havia casa.

a mãe passa um ano, como as crianças que ainda brincam
numa rua imaginária passam as horas. mãe inocente
e humilhada pelo céu e pelas estrelas, pelos cães a ladrarem
ao longe, pelas mulheres a caiarem as paredes, pelos sinos
que nos chamam e pela estrada do cemitério. mãe,
vida multiplicada, como se o teu corpo se rasgasse a carne
fosse a terra e as palavras, e os ossos fossem os ramos das
laranjeiras e as palavras.

felizmente, há os versos, último esconderijo da pureza.
porque o destino são os versos e os pombos que cruzam
o céu em círculos que sempre regressam.

as minhas irmãs semeiam pensamentos na escuridão
absoluta das manhãs. este é o dia presente, esta é a
hora presente. agora, neste instante, sobres esta letra última,
repousa o peso dos teus cabelos. os nosso sonhos
atravessam a janela e estendem-se no chão, vêm do céu,
desenham-nos as sombras rente aos corpos velhos
e sem uso. tomamos banho. a água. a água. os nossos
sonhos dissolvem-se lentamente onde os esquecemos.

estou na casa onde as memórias se sentam nas cadeiras
para jantar em pratos invisíveis. aquele quadro é bonito.
aquela jarra foi comprada na feira de outubro. aquele
livro tem palavras que não significam nada.

existe uma fruteira na mesa onde a mãe serve todos os dias
o meu destino. existe um corredor a lembrar todos os dias
a solidão povoada. existe papel e versos. existe tudo aquilo
que não digo, que não sei dizer, que está na minha caligrafia,
que está ordenado nas folhas de tantos outonos do quintal
[abandonado.
existe uma mesa, uma lareira apagada, as mãos, uma sepultura
sozinho no cemitério, os olhos, os ossos, a minha pele e as horas
escritas no futuro impossível

*José Luís Peixoto – A Criança em Ruínas, Quasi
p.30 – vejo na minha caligrafia as escadas do meu destino

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